O mercado de jogos e apostas é tradicionalmente controverso por se tratar de uma atividade que é entendida paradoxalmente como inofensiva e ao mesmo tempo potencialmente perigosa. No Brasil, a loteria do jogo do bicho assume um lugar de destaque nesse debate devido à sua articulação com diversos aspectos da tradição e cultura nacional. Desse ponto de vista, busco analisar o jogo com o intuito de compreender algumas das formas com que sua organização se vincula a outros mercados para a produção de uma economia inserida entre o legal e o ilegal. Ao transitar em tais fronteiras, atores imersos nesta prática constroem ligaduras entre atividades econômicas distintas no qual a influência político-econômica dos donos do jogo se amplia e se fortalece. Ora tratados como investimento, ora como forma de “lavar” os recursos oriundos da contravenção, aqui proponho uma análise de como o poder e a influência político-econômica do bicho e dos recursos ilegais oriundos dele possibilitam fortalecer os demais mercados legais explorados por seus operadores.
Disputas pelo controle do jogo envolvem a produção de alianças voláteis que se consolidam e se desfazem à medida que os interesses político-econômicos se voltam para a dominação territorial de partes da cidade. Respeitando estruturas hierárquicas e disciplinares, o mercado dos jogos ilegais adquiriu formas empresariais de manter-se lucrativo a partir de valores comuns entre os que buscam tomar para si o monopólio do jogo. Além disso, as relações de parentesco e afinidade explicitam o modo com o qual os controles do jogo encontram-se circunscritos entre pequenos grupos, inserindo, neste sentido, a prática do apadrinhamento como peça inerente à estrutura macropolítica do referido mercado. O lucro no jogo é entendido como uma das formas com as quais tais controles são consolidados e um dos objetivos fins. Pois, aqueles que estão no comando da loteria utilizam dos grandes recursos adquiridos para ampliar cada vez mais seu poder. A divisão territorial é aqui compreendida como uma incessante busca do monopólio do jogo dentro de certos limites de uma convivência “pacífica” entre seus operadores. Apesar disso, fica evidente aqui que, apesar dos controles regulatórios impostos pelos próprios atores nesse campo disputas, conflitos armados são, e provavelmente continuarão a ser no futuro próximo, cada vez mais as formas de lidar, coibir ou, até mesmo, aniquilar a concorrência.
Além disso, a noção de “dinheiro de jogo” aqui pode ser empregada sob distintos aspectos, tanto sob os prismas legais quanto morais. Por vezes apontadas por vender “a ilusão do ganho fácil”, a prática de apostas, em seu prisma moral, tende a ser caracterizada pelo estigma do perigo, do vício e da vadiagem como uma atividade potencialmente destrutiva. Apesar disso, não se trata aqui da adoção de uma visão dicotômica do dinheiro (legal e ilegal), mas uma visão que permita compreender o potencial de transitividade inscrito entre estes polos. Podendo ser entendido, desta maneira, como um sentido ambivalente de uma aquisição ilegal, transgressora ou perigosa, mas advindo de uma atividade que é também, em muitos sentidos, entendida como lúdica, simplória e inofensiva.