Este trabalho aborda transformações associadas ao transbordamento de normas legais e práticas processuais entre sistemas jurídicos. Embora o impulso expansionista de formas jurídicas, usualmente em condições políticas assimétricas, não seja de modo algum um fenômeno novo, a vigorosa expansão de um campo de debates voltado ao que tem sido chamado de imperialismo ou colonialismo jurídico parece indicar a percepção de características específicas no modo como a propagação de conceitos, normas e técnicas processuais está ocorrendo no presente. Em diálogo com esses debates, o objetivo é refletir etnograficamente sobre o alastramento, nas últimas décadas, de mecanismos de persecução penal característicos do direito anglo-saxão – notadamente o instituto da plea bargaining, ou delação premiada – para um número expressivo de países de outras tradições jurídicas em diferentes continentes, inclusive a América Latina. Tomando como referência o caso brasileiro, a análise segue inicialmente o percurso legislativo que deu origem à Lei n. 12.850/2013, que dispôs sobre a celebração de acordos de colaboração premiada em inquéritos e processos criminais, atentando às justificativas e expectativas então presentes no debate parlamentar em relação aos seus efeitos. Em seguida, aborda julgamentos recentes do Supremo Tribunal Federal que colocaram em relevo impasses decorrentes da proliferação desse instituto, que teria se transformado, nas palavras de um dos ministros da corte, em um instrumento de “verdadeira tortura psicológica, um pau de arara do século XXI, para obter ‘provas’ contra inocentes”. A justaposição desses dois momentos da trajetória da delação premiada no sistema de justiça brasileiro leva a considerar como a propagação e recombinação de formas jurídicas desencadeia rearticulações conceituais, institucionais e práticas nos sistemas específicos em que esses institutos passam a agir, com efeitos até certo ponto imprevisíveis e incontroláveis. Como alerta Zaffaroni (2015: 229) ao enfatizar o vínculo profundo entre a legislação penal e a constituição política, o avanço de leis ou reformas parciais que minam o caráter sistemático da legislação penal não tem como efeito simplesmente dificultar sua aplicação coerente e previsível. Muito além disso, o enfraquecimento dos limites jurídicos para o exercício do poder punitivo deveria ser entendido como um ataque indireto à Constituição, prenunciando o desmoronamento dos demais direitos – e do próprio direito.