Desde 2020, o Brasil vem enfrentando as drásticas consequências da Covid-19. Em 2023, o número de mortos ultrapassa 700 mil vítimas e, após quatro anos de um governo autoritário, o país passa por um processo de reconstrução profunda. Neste contexto, grupos de vítimas da pandemia se organizam para lutar por seus direitos e demandar respostas públicas do estado, em grupos como AVICO, Associação Vida e Justiça, Coalizão Orfandade e Direitos e Memorial Inumeráveis. Esses movimentos são formados, sobretudo, por familiares de pessoas que morreram de Covid-19, mobilizados pelo luto, e por pessoas que convivem com sequelas ou com a Covid Longa, impulsionados pela persistência dos sintomas.
A partir de trabalho de campo e entrevistas realizadas com movimentos sociais e agentes estatais no Brasil em 2023, este artigo procura responder as seguintes questões: (1) que ideias de reparação, especialmente em relação às ações de construção de memória sobre a pandemia, propõem as vítimas da Covid-19; (2) que posturas e táticas de mobilização elas adotam em relação ao Estado; e (3) como suas práticas se relacionam com a história do autoritarismo e de graves violações no Brasil, ecoando um passado que insiste em se fazer presente.
Entendendo-se como vítimas da violência estatal, integrantes desses grupos recuperam e se inscrevem na longa história de movimentos de vítimas no Brasil, que incluem, por exemplo, pessoas afetadas pela ditadura militar, violência policial, violência de gênero e genocídio indígena. Nessa dinâmica, vítimas da Covid-19 disputam a própria ideia de “vítima”, palavra que implica, ao mesmo tempo, a presença de uma violação ou injustiça, de uma pessoa que concretamente sofra seus efeitos e de um responsável por perpetrá-los. A partir disso, imputam aos governantes da época e ao Estado a responsabilidade pelos crimes da pandemia, gerando demandas políticas e judiciais. E propõem, como uma das muitas formas de reparação, a adoção de políticas de memória e práticas de memorialização. Além de se concretizar na demanda por memoriais oficiais e pela institucionalização de discursos que reconheçam violações e vítimas, a memória pleiteada pelos movimentos também é convertida em prática: está em sua mobilização a partir do luto e da dor, em sua ressignificação das sequelas e dos sinais da síndrome pós-viral, em sua recusa ao esquecimento ou mera aceitação das injustiças e em sua decisão diária de lembrar e honrar seus entes queridos.
Considerando a maneira singular como o coronavírus afetou o Brasil, sobrepondo-se a um governo negacionista que produziu múltiplas crises, este artigo toca em um árduo processo de reconstrução e disputa que ainda está em curso — e assim deve permanecer. Mais uma vez, diante da dupla ameaça de anistia e amnésia, o país se depara com a demanda por justiça. Nessa confusa encruzilhada que mistura passado, presente e futuro, pautar a memória da pandemia é abrir os caminhos para o reconhecimento, a reparação e a projeção de horizontes sociais e políticos.