Nosso paper apresenta alguns resultados de um estudo de caso sobre a vacinação prioritária de indígenas contra à COVID-19 no Brasil, dentro da pesquisa “Respostas Indígenas à COVID-19: arranjos sociais e saúde global” e da “Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19”(PARI-c). As iniciativas mobilizaram dezenas de universidades e organizações indígenas brasileiras e, remotamente, quase uma centena de pesquisadores indígenas e não indígenas, em diferentes regiões do país.
Entre julho e agosto de 2021, 11 pesquisadores não indígenas se juntam a 17 pesquisadores indígenas, de 11 povos com situações diversas de residência e reconhecimento territorial e étnico-racial. Este corpo multiétnico e multidisciplinar, suas experiências de vida e de suas comunidades na pandemia, em epidemias recentes e imemoriais, são colocadas a pensar/sentir/mobilizar sobre sua vacinação (não)prioritária.
A vacina imediatamente acionava memórias epidêmicas e de extermínio na interface com o Estado nacional, da guerra colonial acompanhada por doenças fatais e inoculações propositais do tempo do Serviço de Proteção aos Índios, na primeira metade do século XX a epidemias mais recentes.
Considerada resultado de “outra ciência” e “provisória”, a vacina como a doença eram identificadas aos não indígenas e seus “corpos”, sem deixar de interagir, ora por fugas, ora por conexões, com medicinas, noções de saúde e bem estar, cosmosociologias indígenas, como evocam conceitos/ações de “proteção/imunização” nativa de si e suas comunidades.
Dúvidas eram acompanhadas do desejo e da luta pela disponibilização prioritária da vacina, apesar das precárias informações “seguras”, a serem submetidas aos seus procedimentos de conhecimento e decisórios.
As múltiplas situações e desfechos do acesso (prioritário/precário/judicial/não prioritário) e não acesso à vacina eram inseparáveis da política indigenista historicamente exterminatória, como das tentativas contemporâneas de supressão dos direitos constitucionais ao reconhecimento e especificidades de políticas, conquistados por indígenas durante a redemocratização do Brasil, na década de 80.
Um Plano Operacional(PO) é divulgado em dezembro de 2020, junto à fala presidencial sobre a vacinação transformar pessoas em “jacaré”, alimentando redes institucionais e oficiosas de fakenews. A judicialmente conquistada vacinação prioritária era destinada àqueles em “terras demarcadas”, considerados “mais vulneráveis” e suficientemente indígenas para merecerem a atuação do órgão responsável pela atenção sanitária. Números e “denominadores” vagos e oscilantes excluíam pelo menos 50% deles, em cidades, terras não reconhecidas, retomadas e comunidades periurbanas.
Houve intencional silêncio sobre diretrizes quanto a procedimentos, articulações interinstitucionais necessárias à efetividade de ações de saúde, quanto a campanhas de vacinação – fossem indiferenciadas ou culturalmente sensíveis – ou diálogos informacionais que considerassem conhecimentos e mecanismos decisórios de indígenas.
No lugar prioritária, dialógica e homogênea, condições de sua efetividade, infodemia intencional e a violação de procedimentos de conhecimento e decisão de indígenas, tornam a vacinação heterogênea entre povos ou dentro deles; judicializada para aqueles “fora” dos parâmetros de “indianidade” projetados por órgãos públicos.
Globalmente marcados por iniquidades e marginalização, uma etnografia sobre as múltiplas trajetórias da (não)vacinação de indígenas brasileiros confronta o discurso oficial de que “Brasil priorizou indígenas durante a pandemia”, requalificando criticamente a ideia de “hesitação vacinal” e visando o aprimoramento participativo das políticas de saúde durante