As seculares romarias que ocorrem em Bom Jesus da Lapa (BA) fazem com que o município receba o título de capital baiana da fé, sendo o terceiro maior fenômeno religioso dessa natureza no Brasil. Os movimentos de peregrinação católica para o Santuário do Bom Jesus datam de mais de trezentos anos. Não obstante, a presença indígena nesses movimentos só tem ganhado destaque nas últimas edições da Romaria da Terra e das Águas. Talvez isso se dê pela articulação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) com Povos e Comunidades Tradicionais de todo Brasil na viabilização da participação desses povos de forma expressiva. Entretanto, há pelo menos dois séculos, grupos familiares indígenas compõem esses complexos circuitos de fluxos migratórios. Motivados por intenções devocionais, em caravanas transportam e ressemantizam conhecimentos que se traduzem em movimentos tímidos que explicam, por exemplo, a penetração histórica da tradição de conhecimento católico-cristão em terras indígenas cujo processo de catequização missionária não foi intenso.
Embora seja possível encontrar estudos de natureza antropológica que retomam especificamente a Romaria da Terra e das Águas e suas implicações políticas (Magalhães, 2021; Rodrigues Santos, 2017; Steil, 1996), assim como a ocupação ancestral africana, negra e quilombola em Bom Jesus da Lapa (Santana, 2022; Nogueira, 2011), a análise da presença indígena em contextos que envolvem as romarias lapenses ainda é escassa. A pesquisa que tenho desenvolvido, em caráter inicial, se propõe a investigar como memórias indígenas contemporâneas vêm sendo construídas associadas a esses movimentos de peregrinação e devoção ao Sr. Bom Jesus. Também me dedico a compreender como se deu a construção de uma memória local que reconhece os tapuias como primeiros habitantes da região, antes mesmo da chegada do padre português Francisco Mendonça Mar (Monge da Gruta), a quem é conferida a descoberta da Lapa.
Concomitante a narração de histórias por moradores lapenses que reconhecem sua ascendência indígena e/ou quilombola – mesmo que essa não possa ser traçada a partir de uma memória genealógica -, é possível encontrar registros históricos de eclesiásticos que conferem aos tapuias o lugar de “tribos ferozes de índios antropófagos que existiam em grande abundância”; “nações bárbaras de gentios da terra” que teriam causado “grandes danos e traições” aos moradores durante o século XVII, tendo acometido a população com assaltos e mortes com requintes de crueldade (Villanova Segura, 2020 [1937], p.52).
Por último, gostaria de indicar a possibilidade de caracterizar esses movimentos de romaria como retomada simbólica de um território ancestral. Estaríamos a assistir um movimento lento de ressignificação da terra sacra como indígena? Poderíamos dizer que a afluência de indígenas para a região (mesmo que circunstancialmente) configura uma espécie de retorno à terra de origem intermediada pela figura de santos católicos e pela memória dos antepassados? Tratam-se de questões ainda sem resposta e que devem ser melhor explicitadas oportunamente.