O presente estudo utiliza-se de dados extraídos da minha pesquisa de campo de doutorado. Busco apresentar como a memória coletiva é elemento central no cotidiano de familiares e amigos de vítimas de violência letal no Rio de Janeiro, Brasil. No pós-morte ações aparentemente corriqueiras, como guardar os pertences do falecido, escutar as músicas que ele ouvia, construir memoriais nos bairros, realizar eventos, se relacionar com o filho por meio de gosto, toque e cheiros são acionados como o “fazer justiça”, “lembrar dele”, “cuidar do [meu] filho, mesmo após a morte”, como costumam dizer. Trata-se de diferentes estilos de criatividade que congregam processos de “fazer viver”, seja quando estes representam uma resposta ativa contra o fazer estatal ou quando buscam estabelecer um diálogo direto com o morto. Neste sentido, são além de homenagens, uma participação política cidadã e democrática, que provoca na sociedade o debate acerca da violência, da justiça e do direito à memória.
A maior parte das situações que apresento neste artigo são eventos que ocorreram entre 2018 e 2021, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Trata-se de memórias minhas e dos outros, tecidas no cotidiano da pesquisa de campo. A principal maneira que materializo o resultado dessa relação é através da etnografia; matérias de jornais; conversas informais; entrevistas com interlocutores; participação em passeatas; audiências públicas; reuniões com ativistas; fotos; postagens em redes sociais e registros anotados no diário de campo. Dessa forma, o passado não é construído através de narrativas únicas, mas trabalhado a partir do presente concreto em que ele é evocado.
Para familiares de vítima a “luta por justiça”, no tempo do pós-morte está caracterizada pelo luto, mas também pela capacidade de atravessá-lo e transformá-lo no que intitulam como “luta”. A morte não se ressume em apagamento ou em um passado distante, mas é reatualizada no “tempo presente” – é ele que congrega em si passado-presente-futuro, já que a experiência de lut(o)a reside em “emprestar a minha vida para o meu filho viver por mim”, me contou uma mãe de vítima. Dessa forma, a memória se apresenta como um conceito-prática que nos é útil para refletir não somente momentos que marcam tragicamente a vida de pessoas, ela é uma ferramenta analítica para compreender, inclusive, atos individuais ou coletivos que deflagram invenção, potência e transformação social, tanto em seu caráter material, quanto imaterial. Nesta relação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, fazer o filho viver através de rituais de memória, é trazer o falecido para perto/dentro de si.
Este Simpósio de Temático se conecta de forma muito direta com as proposições e elaborações que tenho feito sob meus dados de pesquisa, tendo em vista que me interessa compreender como meus interlocutores articulam a memória em suas lutas sociais e, também, em suas vidas ordinárias. Entender como a memória se manifesta em ações de participação cidadã e reivindicação por direitos são questionamentos que norteiam de modo contundente minhas reflexões sobre o campo.