A medicalização é o processo de reduzir questões amplas, que podem envolver diversas esferas da vida, a explicações circunscritas ao domínio da medicina. Assim, este fenômeno, que é investido nos corpos, aparta a inserção social do indivíduo de suas questões de saúde-doença. A medicalização da infância, inserida neste amplo fenômeno que abrange a medicalização da vida em geral, configura-se como uma estratégia adotada para enfrentar as supostas dificuldades no processo de aprendizagem e/ou problemas de conduta manifestados por crianças e adolescentes, principalmente no contexto escolar (MORAIS, 2022). Questões cotidianas e socialmente heterogêneas, como os processos de aprendizagem, são individualizadas e atomizadas sob a luz do discurso biológico e psiquiátrico.
Vorcaro (2011) destaca a representação, na modernidade, da criança como uma potência do futuro. Essa perspectiva implica que a criança é vista pelo que se supõe que ela se tornará. Essa característica ressalta a importância dos sinais e indícios que permitem antecipar o desenvolvimento futuro da criança. Nesse cenário, de certa forma, o real da infância é obstruído por um ideal de existência adulta. É por esse ideal, que as crianças “descabentes”, aquelas que não param, que não cabem, que são o centro das queixas escolares (ARANTES, 2017) entram no circuito da diagnosticação e medicação.
Diversas pesquisas acadêmicas demonstram o circuito: criança-sintoma que “não cabe” é encaminhada para um laudo pela escola, através dos pais. Falam sobre a criança para os pais, estes para o psiquiatra. A criança falada é escutada então pelo ouvido do poder-saber médico. Muitas vezes são aplicados testes psiquiátricos, e realizadas algumas perguntas; a conclusão leva a um diagnóstico ou não.
É razoável supor que uma criança fale de maneira distinta diante de um médico de jaleco branco, em uma sala impessoal, em comparação com sua comunicação na escola com um professor ou na presença de uma pedagoga ou psicóloga, cercada por jogos e materiais educativos. Partindo do reconhecimento que a criança performa de maneira diferente em contextos variados, influenciada pelas dinâmicas de autoridade, expectativas e interações sociais; estamos realizando, nesta pesquisa, a escuta do que as crianças têm a dizer sobre a medicalização e a diagnosticação através da etnografia.
Nossa pesquisa está sendo realizada com crianças das periferias de Porto Alegre, mais especificamente do bairro da Lomba do Pinheiro, que participam do projeto municipal de assistência social: o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. Esta é uma pesquisa que está em sua fase inicial, assim pretendemos compartilhar os primeiros achados junto as crianças falantes acerca da temática, bem como trazer algumas contribuições sobre o fazer etnográfico com crianças.
Referência:
ARANTES, Ricardo Lugon. A constituição da demanda para a neurologia nas vozes das ensinantes. 2017.
VORCARO, A. O Efeito Bumerang da Classificação Patológica da Infância. In: JERUSALINSKY, A.; FENDRIK, S. O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea (Orgs.) 2 ed. São Paulo: Via Lettera, 2011. p. 219-230.