Ponencia

“Informante ou testemunha”?: construção de verdade e memória em casos de violência de Estado brasileiro através de provas orais

Parte del Simposio:

SP.73: Perspectivas etnográficas sobre las memorias de la violencia política y la represión en América Latina: conmemoración, cuerpos y territorios

Ponentes

Isabella Markendorf Marins

Universidade Federal Fluminense

Marilha Gabriela Garau

Universidade Federal Fluminense

Com o advento da nova ordem constitucional, termo jurídico final do período ditatorial no Brasil, foi estabelecida a chamada Justiça de Transição, cuja missão buscava a reconciliação social e garantir os direitos fundamentais que foram violados. Tais violações ocorreram devido ao estado de exceção imposto pelo regime. Enquanto as propostas da Justiça de Transição não são plenamente implementadas no Brasil, algumas instituições continuam a violar os direitos fundamentais. Um exemplo disso é a Polícia Militar brasileira, que mantém uma estrutura militarizada e resquícios do regime ditatorial, perpetuando a violência, cometendo homicídios e restringindo direitos e garantias fundamentais.
A presente pesquisa parte da observação de audiências que tratam de casos envolvendo violência de Estado no Tribunal do Júri do Rio de Janeiro. A fim de compreender de que forma são recepcionados os mais variados discursos e versões sobre os fatos envolvendo mortes por intervenção policial, o trabalho lança mão da descrição densa (Geertz, 2008) de audiências problematizando a categoria “testemunha”. O campo revela que a classificação é resultado de um processo classificatório feito com base em interpretações situacionais do julgador (Eilbaum, 2012), a depender das identidades apresentadas pelos sujeitos processuais (Garau, 2023). As reflexões apresentadas visam compreender como as diferentes decisões dos juízes sobre quem está ou não autorizado a discursar sobre os fatos podem afetar o curso de construção de provas, de forma a tornar um espaço de construção de memória de vítimas de mortes por intervenção por agentes policiais mais um ambiente de violência institucional para os corpos subjugados.
Ao ser questionada pela juíza, durante o processo de inquirição na audiência de instrução e julgamento, dona Ana, mãe da vítima, respondeu que não possuía relação de amizade ou inimizade com o réu. Dessa forma, foi ouvida como testemunha. Em outro caso, Clara, por outro lado, amiga da vítima, denominada a seguir de Júlia, viu quando os tiros entraram na casa onde estava com a amiga. Ainda sim, o juiz entendeu que apesar de ter presenciado os fatos, Clara possuía uma relação a vítima, e, portanto, não deveria ser ouvida como testemunha. Mais adiante, ainda no caso de Júlia, a oitiva de uma perita de local foi classificada como informação e não testemunha. Quando questionada sobre a decisão, a magistrada responsável pelo caso explicou que a perita não era oficial da Polícia Civil, ao contrário, havia sido contratada pelo Ministério Público (parte acusadora). Entendeu-se, portanto, que por ter sido arrolada pela parte autora não poderia ser parcial em relação ao réu. Por outro lado, todos os documentos e versões apresentadas por policiais oficiais são dotados de presunção de veracidade o que por si só aponta para assimetrias que desigualam as partes na dinâmica processual no processo de construção da memória.