Ponencia

“Gravidez de papel”: o itinerário da adoção

Parte del Simposio:

S.P. 75: Experiências de maternagem, práticas de cuidado e políticas de reprodução social na América Latina

Ponentes

Letícia Prezzi Fernandes

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Neste ensaio, busco descrever o itinerário de Adoção na Comarca de Porto Alegre/RS, incluindo todas as suas fases desde a abertura do processo de habilitação, a habilitação em si, a renovação da habilitação e, enfim, o processo de aproximação e de adoção, e as noções de maternidade e de adoção produzidas e veiculadas ao longo deste percurso. Assim, entendo que o itinerário da adoção se constitui numa instância que ensina aos adotantes e adotandos como viver em família de determinada forma. No Direito de Família, parte do Código Civil, todas as leis são para filhos naturais, de vínculos chamados também de naturais. A adoção constitui uma seção à parte e se coloca como exceção dentro das demais leis. A adoção não é regulamentada no direito de família, mas no conjunto de leis criado pela Constituição Federal, pela Lei de Introdução do Código Civil, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo Código Civil. Ou seja, a adoção extrapola os limites da família, sendo necessária uma regulação ainda maior que a da família. O discurso jurídico que ali é veiculado está calcado em um pressuposto da consanguinidade. De fato, diversas autoras e autores indicam que a consanguinidade é um valor muito forte em nossa cultura, dificultando o processo de adoção, uma vez que a adoção é a última possibilidade que uma criança tem, já que se entende que a família biológica é o melhor lugar para uma criança viver. Nesse sentido, a adoção não se constituiria como um modelo de construção familiar em si, mas dependeria e deveria se espelhar no modelo biológico de família. A partir de minha experiência enquanto adotante, observei que noções como a de que a adoção é a última opção são reiterados pelo próprios agentes que efetivam a adoção. Para alguns desses profissionais, não faz sentido alguém que não “precisa”, pois pode gerar filhos biológicos, recorrer à adoção. Negar a gestação pode suscitar um escrutínio da vida sexual além de denotar uma possível necessidade de tratamento em saúde mental. Ter filhos biológicos ainda é considerado um caminho natural e universal para as mulheres. Além disso, há poucos relatos sobre o desconforto gestacional, sendo a gravidez relatada de forma muito homogênea como algo sublime, mágico e especial. As mulheres que não se identificam com este desejo são tratadas como aberrações, problemáticas, que necessitam tratamento. A noção de maternidade existente em nossa cultura está relacionada a instinto, amor abnegado, sendo descrita como algo divino e sublime. Dessa forma, realmente parece ser muito difícil aceitar que uma mulher negue a gestação como forma de ter filhos. A chamada “gravidez de papel” parece ser um apelo na preservação de alguma biologicidade neste vínculo que se dá de forma absolutamente voluntária e no social.