Este trabalho tem como principal objetivo abordar a formação de corpos e a noção de corporalidade desde a perspectiva kanhgág. A experiência de corporalidade deste povo está embasada nas relações multiespécies em contexto de ontologia relacional. Para esta análise, será considerado que ambas estão alicerçadas em três pontos principais: o sistema de metades, enquanto o conjunto de relações Kamé e Kanhru; os conhecimentos ancestrais aprendidos ao longo da vida; e, especialmente, a exposição com as materialidades do mundo e os seres da série extra-humana.. Na vida kanhgág teoria e prática, razão e emoção, não se separam e configuram as bases da ontologia relacional abarcando uma vasta diversidade de seres e espécies. Este sistema é complementar e relacional e encontra-se em uma dinâmica que busca, a cura, dado a condição de instabilidade dos corpos. O processo de investigação da pesquisa conta com a voz e a presença da kujà, xamã, do povo Kanhgág, Gah Té – Iracema. A partir dos pressupostos da metodologia colaborativa, ela não só realiza ativamente a “interlocução oral” apontando os caminhos a seguir, mas sobretudo ela expressa e é, a partir de seu próprio corpo, a fusão de saberes que são compartilhados entre mundos diferentes Neste sentido, há o constante diálogo com Gãh Té e suas corporalidades que estão sempre em correspondência com todos os seres do cosmos. Conforme relatos etnográficos, serão retomados o modo de conhecer e se relacionar de acordo com horizontes kannhgág, considerando as agências e as propriedades dos seres vivos que são dotados dos espíritos que curam, como por exemplo: a terra, a água, os peixes, o milho, o mel e as ervas. Estes são alguns dos importantes seres e elementos que constituem e atuam na formação dos corpos kanhgág. É buscando na mitologia e no xamanismo kanhgág que acontece a aprendizagem cotidiana, nas atitudes e na contação da história oral por Gãh Té que se percebe a co-abitação destes seres vivos que agenciam a dinâmica e a vida em território, pois eles compõem, comunicam e proporcionam um ritmo de vida outro a este povo. Perspectivas como estas, cuidam, invocam e escutam, sobretudo, a sabedoria de animais que são os guardadores da floresta, principalmente aqueles animais que exercem o papel de auxiliar os kujà. Gãh Té, a partir da luta e defesa pela manutenção deste mundo outro e cuja centralidade envolve a mãe terra, testemunha, movimenta e traduz noções de respeito e reciprocidade com estes seres, já que a partir da colonização européia, decorre a dificuldade e a ausência destes elementos e da diversidade dos seres que justamente trazem o equilíbrio e possibilitam o enfrentamento das doenças. Os Kanhgág não consideram somente os alimentos como os formadores e transformadores do corpo, como no ocidente eurocentrado. Assim como seus elementos, o corpo também está em constante transformação. Aí resulta a importância de compreendermos que não somente a terra, mas a noção de territorialidade kanhgág (que institui a movimentação, busca e relação com outros seres do território) é que consiste em uma potente ferramenta cosmopolítica.