A entrega voluntária é um procedimento mediado pela Justiça em que a gestante opta por entregar o bebê para adoção. Esta possibilidade está prevista no Brasil desde 2009 e foi regulamentada como um direito da infância, em 2017, pela lei 13.509 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Este trabalho discute as diferentes faces da gestão de corpos e das maternidades inscritas no dispositivo da entrega voluntária no país. Tomamos a adoção e suas prerrogativas legais, sociais e simbólicas como o epicentro de diferentes processos de intervenção estatal nas famílias, ao longo dos séculos XX e XXI, com foco analítico em três dimensões interventivas: o fomento da adocão promovida em nome do “melhor interesse” social e moral das crianças, a construção do problema social a ser enfrentado para evitar o infanticidio e o aborto e, por fim, as condicões que estão postas para o exercicio da maternidade, objeto de precarização crescente nos últimos anos, aguçado no cenário pandêmico. Para refletir sobre o papel do estado na produção da margem, utilizamos a perspectiva antropológica de Veena Das e Deborah Poole (2008), que nos propõe analisar as margens como “implicações necessárias do Estado, da mesma forma que a exceção é um componente da regra”. Partindo das narrativas de mulheres entrevistadas que fizeram a entrega do bebê para adoção e mulheres que desejam adotar, e de uma etnografia de documentos (sobreleis, projetos de lei e material da imprensa), buscamos refletir como se configuram as moralidades sobre as práticas maternas em anos recentes no Brasil, a fim de comprender os límites entre o público e o privado, legal e ilegal, a linguagem que situa a entrega voluntária como um “ato de responsabilidade e de cuidado”, ao mesmo tempo em que criminaliza e controla outras modalidades caracterizadas recentemente como tráfico humano e adocão ilegal. Realizamos análise das atuais tecnologias da adoção, dos projetos de lei que tratam do assunto e trazem a prerrogativa da adoção na formulação (Estatuto do Nascituro e Estatuto da Gestante), e matérias jornalísticas do período da pandemia. Partimos do pressuposto que essas propostas de regulamentação da entrega do bebê para adoção têm em comum o sentido de fomentar a adoção de bebês da forma mais célere possível. Embora imprecisos, os dados sobre “bebês encontrados abandonados em latas de lixo” têm sido utilizados no país para produção de pânico moral e elaboração de políticas públicas. Há um apelo a situações e práticas que decorrem de fatores sociais, econômicos e políticos, mas que são apresentados sem críticas ao papel do Estado na garantia de políticas públicas como previsto no Art. 227 da Constituição Federal e no ECA. Percebe-se o uso desses dispositivos como barreiras aos direitos reprodutivos e acesso ao aborto legal. Nesses termos, a entrega é apresentada como uma dimensão do cuidado e do afeto. Assim, esse estudo pretende contribuir para o debate mais amplo sobre biopolítica da reprodução no Brasil e as tecnologias de governo da vida e da gestão dos corpos.