Neste trabalho apresento uma análise qualitativa, realizada durante pesquisa de doutorado, do processo de regulamentação da cannabis para fins medicinais na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), no Brasil. Trata-se de um órgão técnico, ligado ao Ministério da Saúde, governo federal, que define normas para a produção, comércio e consumo de alimentos, medicamentos, dentre outros produtos, de modo a resguardar a saúde da população. Desde meados de 2013, no Brasil, a demanda pela permissão para o uso medicinal de compostos de maconha tomou nova proporção com a entrada em cena de pacientes com doenças raras e seus familiares, notadamente mães de crianças com epilepsia, que passaram a demandar ao Estado o acesso ao extrato feito da planta, para melhoria da saúde e da qualidade de vida de seus filhos, organizando-se em associações civis. Desde então a própria Agência definiu formas de importação, porém foi só em 2019 que enfrentou de fato um processo regulatório que culminou na RDC 327/2019 – regulamentação atualmente vigente no Brasil, que permite o registro e a produção de medicamentos de cannabis, mas não permite o cultivo para tal pelas empresas de medicamentos. Nesta análise, busco entender o papel desempenhado pela Agência reguladora e posicionar os atores participantes do processo, de indivíduos a instituições, passando pelo governo federal, empresas farmacêuticas, pacientes-consumidores, ativistas e associações. É afinal a ANVISA um órgão regido pela técnica ou pela política? Observamos neste processo regulatório como as decisões do órgão estiveram sujeitas a diferentes formas de participação e influência. Como se constrói uma performance de que a decisão tomada é uma decisão técnica? A discussão sobre técnica e política na Agência toma outra proporção, inclusive, no contexto da crise sanitária da covid-19, quando a ANVISA esteve no centro da política nacional por conta do conflito em torno da aprovação das vacinas, no fim de 2020. De forma semelhante ao processo da cannabis medicinal, no caso das vacinas o governo federal não queria a sua aprovação e houve tentativas de pressão direta e indireta do presidente nos bastidores, disputas de narrativas e embates de declarações públicas. Por um lado, o processo regulatório da maconha para fins medicinais permite questionar se as fronteiras entre o que se entende como “Estado”, “Sociedade” e “Mercado” são mais tênues do que parecem, apontando para limites de cada uma dessas noções. Ao mesmo tempo, tudo indica que o processo político analisado reitera a força da “ilusão de Estado”, que dilui esses limites em processos burocráticos e performances que têm, por fim, efeitos legitimadores sobre a própria noção de Estado.