A emergência global de saúde da pandemia de COVID-19 não foi marcada apenas pela agência de um microrganismo patogênico, mas seus múltiplos efeitos se manifestaram de forma irregular, modulados por diferentes contextos sociopolíticos. No Brasil, junto à emergência do novo coronavírus foi observada a manutenção de desigualdades e injustiças sociais, ressurgência de políticas autoritárias, discurso de ódio e do negacionismo como produtores da biografia do COVID-19. No entanto, os sentidos e afetos desse momento crítico são atravessados por elementos mais ou menos contingenciais que desabilita explicações estáveis sobre este fenômeno. Neste sentido, o presente trabalho propõe considerar os sentidos e afetos acerca da pandemia de COVID-19 como locus de análise a fim de contribuir para preencher narrativas-chave sobre essa emergência global com biografias residuais da vida social do COVID-19. Por biografias residuais gostaria de indicar aquilo que escapa à narrativa-chave mas que possibilita contá-la por outro caminho. No presente trabalho, o caminho escolhido se constrói por meio dos sentidos e afetos da COVID-19 entre os povos indígenas no Brasil a partir de revisão bibliográfica e material etnográfico coletado durante o ano de 2021. Ao observar e descrever este caminho, percebe-se que práticas e discursividades que a princípio poderiam ser encaixadas em categorias como anticientíficas e negacionistas, indicam formas de forjar relacionamentos éticos, econômicos e políticas entre múltiplas realidades implicadas em ontologias e cosmografias irredutíveis ao monorealismo científico. Tal irredutibilidade não pressupõe a ausência da possibilidade de concordâncias pragmáticas entre ciência e outros modos de conhecimento para a construção de guias de ação para a gestão de momentos críticos. Ao contrário, argumenta-se que descrever uma biografia residual da vida social da COVID-19 entre os povos indígenas no Brasil, contribui para a amplificação do efeito pedagógico do saber fazer político e científico da antropologia: localizando e dando historicidade as desigualdades e injustiças sociais que configuram o encontro com o novo coronavírus; e estende nosso repertório sobre modos de habitar o mundo para a construção de políticas ontológicas possíveis em um mundo que vai do entrelaçado ao ainda mais entrelaçado.