Os dispositivos estatais para o governo das águas no Brasil têm se baseado em uma concepção da água como insumo de processos produtivos, em detrimento de seus atributos ecossistêmicos e de sua importância para os modos de vida de diferentes segmentos populacionais, principalmente desde a instituição da Lei das Águas, em 1997. A Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) define a água como um bem de domínio público e, ao mesmo tempo, como um recurso natural limitado, dotado de valor econômico.
A presente pesquisa teve início com a observação participante em avaliação oficial da PNRH, por ocasião dos seus vinte anos de sua implementação, desdobrando-se na etnografia de documentos governamentais, e conduziu à percepção da influência da instituição financeira multilateral Banco Mundial sobre os dispositivos estatais brasileiros para o governo das águas. A análise de relatórios de projetos de caráter nacional do Banco Mundial no Brasil nas áreas de recursos hídricos e saneamento permitiu identificar diretrizes que convergem para o afastamento das instituições estatais do papel de provedoras dos serviços de água, restando-lhes a função de regulação, baseadas na compreensão da água como recurso estratégico para a manutenção da estabilidade política, ao mesmo tempo em que promovem a perda do controle sobre as águas por populações locais, em benefício de grandes projetos que beneficiam elites nacionais e corporações transnacionais.
Nesse trabalho, investigo a forma pela qual o banco exerce essa influência, bem como o aprofundamento da adesão do governo brasileiro às diretrizes do Banco Mundial em matéria de água no período pós-golpe. São iniciativas que conduzem não somente à concessão a grupos privados dos serviços de abastecimento de água e saneamento, e acesso a fundos públicos pelo setor privado para realização de grandes obras de armazenamento e distribuição de água e coleta de esgoto, mas também à financeirização desses serviços e projetos, uma vez que abrem caminho para a captação de recursos no mercado de capitais, contribuindo para o processo de transformação da água em uma commodity. Procuro situar esses processos de comoditificação da água e de financeirização dos serviços urbanos dentro de um contexto mais amplo, que implica o redirecionamento da atuação do estado em benefício do capital financeiro, observável em diferentes setores, como no planejamento urbano, geração de energia hidrelétrica e financeirização da agricultura e estrangeirização da terra.
A análise conduz ao exame dos efeitos e danos de modelos de desenvolvimento pautados no que vem sendo denominado, especialmente na América Latina, de neoextrativismo. Considerando tratar-se da análise de políticas de governo, este trabalho também procura contribuir para o avanço de uma antropologia da administração pública, tomando o estudo dos dispositivos estatais para o governo das águas como via de acesso à análise de processos (constantes) de formação do Estado, especialmente aqueles que têm a cooperação técnica internacional como um de seus vetores, bem como suas implicações sobre a noção de soberania.