Ponencia

A pesquisa pela pesquisa? O encontro entre assistência e ciência na epidemia do vírus Zika em Pernambuco/Brasil

Parte del Simposio:

SP.20: Problemas, debates y desafíos actuales en el campo de la antropología de la salud latinoamericana

Ponentes

Soraya Fleischer

Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília

Soraya Fleischer

Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília

Thais Valim

A epidemia do vírus Zika não começou como epidemia, nem como vírus. Naqueles anos de 2015 e 2016, começou com sintomas atípicos que foram se tornando epidemiologicamente significativos (como a microcefalia, a hidrocefalia, deficiências múltiplas etc.). No estado de Pernambuco (região do nordeste brasileiro), as crianças que apresentavam estes sintomas foram primeiramente atendidas em emergências hospitalares e nas unidades de referência materno-infantil. Aos poucos, o número crescente destes graves sintomas pediu mais investigação e, da assistência médica, estas crianças passaram a alimentar a pesquisa científica. Só então sintoma ajudou a explicar vírus e a definir epidemia. Esta pesquisa foi realizada por uma equipe de estudantes de graduação, pós-graduação e docentes do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. A equipe entrevistou, em quatro visitas a Pernambuco (2018, 2022 e 2023), quase uma centena de cientistas e profissionais da saúde de diversas áreas que atuaram para entender o vírus e atender as crianças que desenvolveram com o que se convencionou chamar de Síndrome Congênita do Zika. Os entrevistados nos contaram que os dados clínicos foram importantes para explicar a epidemia, organizar uma rede de atendimentos, acolher e cuidar destes recém-nascidos e também para formar profissionais de saúde, constituir equipes de pesquisa, lograr financiamentos, publicações e carreiras cientificas.

Neste contexto que se passou, principalmente, dentro dos hospitais-escola, há instigantes controvérsias por analisar antropologicamente: assistência e ciência aconteceram “juntas” ou, se “separadas”, a ciência tendeu a ser priorizada? O que foi oferecido às famílias para que incluíssem suas crianças nos protocolos científicos? A partir dos longos estudos de coortes, que tipo de relação foi estabelecida com profissionais de saúde que desempenharam dois papeis, na clínica e na pesquisa? O vínculo pela pesquisa ajudou a família a ter acesso a outros serviços no hospital e na rede de saúde da região? A pesquisa pode ser uma forma de traduzir a Biomedicina e a burocracia estatal, contribuindo para processos de cidadanização destas famílias? Por que profissionais de saúde optaram por realizar pesquisa quando a assistência lhes oferece retorno financeiro tão mais alto? Se um projeto de pesquisa financia aquele ambulatório especializado na epidemia, é justificável permitir que este paciente fure a fila no sistema público? A aquisição de equipamentos e o investimento em infraestrutura hospitalar durante uma epidemia poderão servir, a longo prazo, para outros pacientes ou acabam criando enclaves privatizados de medicina especializada com acesso apenas aos sujeitos de pesquisa?

Aos processos de saúde-enfermidade-atenção-cuidado, a epidemia do vírus Zika propõe que ciência também seja agregada. A partir destas controvérsias, observadas nas entrevistas, a nossa pesquisa procura entender se e como a ciência do Zika ajudou a atenuar as vulnerabilidades e sofrimentos vivenciados pelas crianças atingidas pelo vírus e suas respectivas famílias cuidadoras. A partir do caso das ciências do Zika, nossa aposta é de que as epidemias que têm chegado à América Latina sejam tomadas como temas estratégicos para refletirmos sobre os atuais desafios no campo da Antropologia da saúde.