A epidemia do vírus Zika não começou como epidemia, nem como vírus. Naqueles anos de 2015 e 2016, começou com sintomas atípicos que foram se tornando epidemiologicamente significativos (como a microcefalia, a hidrocefalia, deficiências múltiplas etc.). No estado de Pernambuco (região do nordeste brasileiro), as crianças que apresentavam estes sintomas foram primeiramente atendidas em emergências hospitalares e nas unidades de referência materno-infantil. Aos poucos, o número crescente destes graves sintomas pediu mais investigação e, da assistência médica, estas crianças passaram a alimentar a pesquisa científica. Só então sintoma ajudou a explicar vírus e a definir epidemia. Esta pesquisa foi realizada por uma equipe de estudantes de graduação, pós-graduação e docentes do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. A equipe entrevistou, em quatro visitas a Pernambuco (2018, 2022 e 2023), quase uma centena de cientistas e profissionais da saúde de diversas áreas que atuaram para entender o vírus e atender as crianças que desenvolveram com o que se convencionou chamar de Síndrome Congênita do Zika. Os entrevistados nos contaram que os dados clínicos foram importantes para explicar a epidemia, organizar uma rede de atendimentos, acolher e cuidar destes recém-nascidos e também para formar profissionais de saúde, constituir equipes de pesquisa, lograr financiamentos, publicações e carreiras cientificas.
Neste contexto que se passou, principalmente, dentro dos hospitais-escola, há instigantes controvérsias por analisar antropologicamente: assistência e ciência aconteceram “juntas” ou, se “separadas”, a ciência tendeu a ser priorizada? O que foi oferecido às famílias para que incluíssem suas crianças nos protocolos científicos? A partir dos longos estudos de coortes, que tipo de relação foi estabelecida com profissionais de saúde que desempenharam dois papeis, na clínica e na pesquisa? O vínculo pela pesquisa ajudou a família a ter acesso a outros serviços no hospital e na rede de saúde da região? A pesquisa pode ser uma forma de traduzir a Biomedicina e a burocracia estatal, contribuindo para processos de cidadanização destas famílias? Por que profissionais de saúde optaram por realizar pesquisa quando a assistência lhes oferece retorno financeiro tão mais alto? Se um projeto de pesquisa financia aquele ambulatório especializado na epidemia, é justificável permitir que este paciente fure a fila no sistema público? A aquisição de equipamentos e o investimento em infraestrutura hospitalar durante uma epidemia poderão servir, a longo prazo, para outros pacientes ou acabam criando enclaves privatizados de medicina especializada com acesso apenas aos sujeitos de pesquisa?
Aos processos de saúde-enfermidade-atenção-cuidado, a epidemia do vírus Zika propõe que ciência também seja agregada. A partir destas controvérsias, observadas nas entrevistas, a nossa pesquisa procura entender se e como a ciência do Zika ajudou a atenuar as vulnerabilidades e sofrimentos vivenciados pelas crianças atingidas pelo vírus e suas respectivas famílias cuidadoras. A partir do caso das ciências do Zika, nossa aposta é de que as epidemias que têm chegado à América Latina sejam tomadas como temas estratégicos para refletirmos sobre os atuais desafios no campo da Antropologia da saúde.