A pandemia de Covid-19 intensificou os múltiplos processos de precarização já em curso na América Latina, notadamente a insegurança alimentar e nutricional. Em 2022, mais da metade da população brasileira (58,2%) não possuía alimentos suficientes para refeições completas e diárias, sendo destas, 33 milhões de pessoas em situação de fome (REDE PENSSAN, 2022). A proposta deste trabalho é analisar como as moradoras de uma comunidade periférica urbana brasileira agenciam saídas em seus cotidianos para lidar com a insegurança alimentar e nutricional agravada neste período, a partir de relações comunitárias, familiares e de vizinhança umas com as outras, mas também tecidas com equipamentos públicos de assistência social e à saúde, organizações sociais, igrejas, políticos e grandes empresas. O local é a Vila Nova, comunidade localizada na cidade de Belo Horizonte, que conta com 30 anos de existência e cerca de 900 moradoras/es, e onde eu, pesquisadora e ex-moradora, realizo trabalho de campo desde 2018. As mulheres são as principais chefes de família e cuidadoras da comunidade, em sua grande maioria também são mães, tias e/ou avós, mulheres negras, que exercem ou exerceram trabalhos informais e acessam ou acessaram políticas públicas de transferência de renda.
Para tanto, partirei de três experiências recentes, que articulam atuações tanto coletivas e familiares quanto individuais dessas mulheres em torno da compra, venda, troca e ganho de comida: a inauguração, nos arredores da comunidade, de uma loja de uma grande rede de atacado e varejo do ramo alimentício, que passa a oferecer produtos ultraprocessados em maior quantidade e a custo mais baixo que os mercados locais, além de intensificar o acesso à compra por crédito; a organização de uma rede de distribuição de alimentos a baixo custo e uma cozinha comunitária dentro da comunidade, ambos em parceria com uma ONG e um vereador de base conservadora e cristã evangélica, que passam a ofertar alimentos e promessas em troca de votos eleitorais; e a produção de uma horta comunitária na Unidade Básica de Saúde (UBS) do bairro, em parceria com suas vizinhas e trabalhadoras/es desse equipamento público, onde elas plantam e colhem alimentos sem agrotóxicos e de forma gratuita.
Por meio de um viés interseccional, buscarei compreender como gênero, raça, classe, geração, religiosidade, relação conjugal, posicionamento político, dentre outros marcadores, posicionam-nas de modo diferenciado diante de processos de negociação, resistência e aderência em meio a disputas e conflitos econômicos, sociais, políticos, religiosos, climáticos e ecológicos. Tais reflexões são parte da minha pesquisa de doutoramento em curso, cuja metodologia, de cunho etnográfico, consiste em observação participante em contextos offline e online (neste caso, principalmente por meio de aplicativos de mensagens instantâneas e redes sociais), entrevistas informais e semiestruturadas.